rubro
por: Alexandre Costa

As peças do quebra-cabeça não se encaixavam, a imagem gravada em sua mente, nítida instantes atrás desaparecia lentamente, e fixando-se ao máximo naquela lembrança fugaz, tentava desesperadamente não perder o foco. Não podia deixar cair no esquecimento a cena composta de características fortes. Uma circunstância reveladora, porém, o mantinha na fronteira entre o sucesso e o fracasso: a extremidade de uma superfície irregular que marcava a cena como se fosse um ponto de partida, algo que ele deveria fundamentar-se para resolver o problema. Era mais policialesco que policial, arranjava-se bem em propostas mais simples, mas agora, ali, no chão da sala, o problema mais difícil de sua vida o desafiava como a esfinge que pergunta.
A cena compunha-se da seguinte maneira: um cifo encostado em uma parede, tinha sua fímbria fragmentada, porção essa dispersa pelo chão em pequenos nacos; pela janela desta parede penetrava uma luz sem força nem robustez e que pouco iluminava o ponto em que as linhas e superfícies se encontravam, criando assim um ambiente lúgubre e quase irreal; no centro um tapete de fibras rebuçava uma mancha no chão que assemelhava-se a sangue, mas que na verdade, como se ficou sabendo mais tarde, era vinagre. O vestígio de passos em direção contrária ao vaso de barro, indicava que alguém retirou-se do local rapidamente; e finalmente uma garrafa do citado ácido acético prostrado quase totalmente vazio, junto a outra extremidade do ambiente. Para ele aquela era a cena mais extravagante que já presenciara em toda sua vida. No entanto o desafio de resolvê-la o deixava demasiadamente excitado. Depois de muitos anos, encontrara finalmente um complexo jogo em que deveria combinar as peças a fim de formar um todo compreensível.

Concentrou-se primeiro no cifo, porque lhe parecia mais óbvio começar com algo mais relevante na cena. Juntou com muita dificuldade os pequenos pedaços espalhados com o propósito de reparar a borda fragmentada do objeto. Com esta parte já pronta, pode ver por completo a peça antiga de decoração. Em seguida, voltou sua atenção para a janela no desejo de descobrir algum detalhe perdido, mas nada encontrou que revelasse alguma pista escondida sob as sombras. Parou seu olhar diante do tapete no centro da sala, havia um detalhe que ele ainda não conseguia compreender: por que a mancha sob a peça não se estendia até a garrafa de vinagre na outra extremidade da sala? Ouviu um barulho na cozinha que desviou sua atenção, pensou em ir ver o que estava acontecendo, mas desviar sua concentração naquele momento poderia colocar tudo a perder, o mais importante, o mais relevante estava ali a sua frente, e para montar a cena que por um instante lhe parecia tão clara, nada poderia interrompê-lo. Olhou com mais atenção ainda e lembrou-se da superfície irregular que marcava tão fortemente o ponto de onde deveria começar, e que com toda certeza lhe indicaria a solução do problema. Mas algo novo aconteceu: um novo evento que lhe deu margem a hesitação e perplexidade, difícil de explicar naquele exato momento – e que novamente vinha da cozinha. Por mais improvável que pudesse parecer – e para ele a improbabilidade era um fator negativo – o ruído produzido na cozinha vinha de um defeito no refrigerador. Sem vacilar, desligou o aparelho rapidamente e voltou ao local de onde não deveria ter saído.

E mais uma vez a improbabilidade se fez presente, desvelando um detalhe que ele não havia percebido ainda: na outra extremidade da sala, caído junto a porta entreaberta um pequeno pedaço mordido pela metade de um biscoito de cachorro. Aos poucos aquela imagem latente manifestava-se mais claramente em sua mente. Agora, as pegadas que vinham da mancha embaixo do tapete e que se moviam em direção à porta e à garrafa tomavam um novo sentido. Um flash, e de repente toda a cena estava montada, nítida como um dia de sol. O enigma havia se revelado, e agora ele podia entender perfeitamente o que havia acontecido ali:

Alguém do lado de fora da casa arremessou um biscoito para o cachorro, que atravessou a janela; o cão pulou e derrubou o vidro de vinagre que estava em cima do batente, golpeando então a borda do cifo e quebrando-o em alguns pedaços; arremessado ao chão, o vidro de vinagre derramou uma certa quantidade de líquido; alguém ouvindo o barulho, chegou apressadamente para ver o que estava acontecendo e, percebendo o desastre, correu atrás do cão para espantá-lo pisando na poça que se formou e chutando o vidro, daí a mancha que ia em direção a outra extremidade da sala. Como não havia manchas em cima do tapete, ele deduziu que: não conseguindo limpar o chão, alguém colocou o tecido por cima das pegadas depois de espantar o cão, para esconder toda a sujeira. Provavelmente essa pessoa ouviu alguém se aproximando e saiu do local rapidamente, deixando a garrafa ainda caída no chão. Talvez fosse o filho da dona com medo de uma bronca. E assim o mistério foi resolvido e, contraditoriamente ao que ele próprio havia deduzido: não foi uma tentativa de roubo que deixou todas aquelas pistas. Deveria agora informar ao seu superior imediato sobre a solução do mistério; o que fez imediatamente e com as seguintes palavras:

– Mãe, terminei meu quebra-cabeças!

– Tá bom Rubro. Agora guarda esse brinquedo e vai tomar banho, meu filho.